Uma nesga de céu
Às vezes entre a tormenta,
Quando já humedeceu,
Raia uma nesga no céu,
Com que a alma se alimenta.
E às vezes entre o torpor
Que não é tormenta da alma,
Raia uma espécie de calma
Que não conhece o langor.
E, quer num quer noutro caso,
Como o mal feito está feito,
Restam os versos que deito,
Vinho no copo do acaso.
Porque verdadeiramente
Sentir é tão complicado
Que só andando enganado
É que se crê que se sente.
Sofremos? Os versos pecam.
Mentimos? Os versos falham.
E tudo é chuvas que orvalham
Folhas caídas que secam.
Fernando Pessoa, 26 - 8 - 1930, In Poesia 1918-1930, Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, 2005
Imagem: MB, Moita, 28.03.2022
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