Os sapatos do meu pai

 

Em algum instante de sua vida, você precisa tirar os sapatos de seu pai.

E colocá-lo a dormir.

Você mudará a sua perspectiva de filho e será um pouco pai de seu pai. Há uma humildade que atinge os pensamentos no ato de se agachar, desamarrar os sapatos e encontrar uma fresta no calcanhar para tirá-los. Preste atenção: aqueles minutos são eternos, seguem uma duração emocional incomparável. Lembrará de quantas vezes ele lhe fez isso, sem que você pudesse antever o esforço de convencer alguém cansado a lhe desfazer de suas roupas.

Aquele marmanjo torna-se uma criança, como você já foi: briga, não quer, reclama, esperneia, diz que consegue sozinho.

Não dará ouvidos às lamúrias. Seguirá com o protocolo do sono até acomodar o seu gigante debaixo das cobertas.

Eu botei meu pai em seu berço uma noite de minha consciência, quando ele estava exausto de dirigir por cinco horas. Eu já lhe vi dormindo alisando a sua testa suada e seus cabelos engomados. Murmurei algumas palavras cantadas. Brinquei de ser responsável mesmo sendo um menino.

Ele não recordou de nada na manhã seguinte. Não lembrava de como colocou o pijama, de como deitou, de como adormeceu. Eu ri de seu esquecimento porque eu lembraria para sempre. Por nós.

Fabrício Carpinejar, crónica publicada em 19/7/2018

Imagem: MB, Moita, 13.11.2022




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