O brilho que deixarás
"Faz o que possas e o que não possas, esforça-te até ao extremo, luta, batalha, conquista. Morde os dentes à realidade dura e não largues até a domares. Faz isso tudo como se a grande tarefa dependesse do teu ânimo e do investimento do teu suor. Não deixes, porém, de saber que nada te pertence. Tu não és o dono, és o pastor. Desconcerta-te com o esplendor inexplicável de cada amanhecer. Conserva-te sem palavras perante o mar, como aqueles que pela primeira vez o olharam; sente-te irresistivelmente atraído pela variação de cores, de volumes e de odor da paisagem diurna e noturna; estremece sempre ao primeiro contacto com a água; mantém intacta a capacidade de espanto perante o modo como o vento arrasta as nossas vozes felizes na distância; olha do mesmo modo desprevenido a chuva, os campos alagados no silêncio, as coisas mínimas e amplas, o tráfico das nuvens, a disseminação das papoilas que nos campos se parecem com palavras que sonham. Saboreia o embaraço por aquilo que permanece em aberto não por insuficiência, mas por excesso, e não te apresses a catalogar, a descrever ou aprisionar.
Que a tua forma de compreensão seja um outro modo de ampliar o espanto. Seja esse o legado àqueles que amaste."
José Tolentino Mendonça, O brilho que deixarás, in O pequeno caminho das grandes perguntas, Quetzal.
Imagem: MB, Moita, 07.04.2024
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