Separação

 

"Desmontar a casa e o amor. Despregar
os sentimentos das paredes e lençóis.
Recolher as cortinas
após a tempestade
das conversas.
 
O amor não resistiu
às balas, pragas, flores
e corpos de intermeio.
 
Empilhar livros, quadros,
discos e remorsos.
Esperar o infernal
juízo final do desamor.
 
Vizinhos se assustam de manhã ante os destroços junto à porta:
- pareciam se amar tanto!
 
 Houve um tempo:
 
 uma casa de campo,  
fotos em Veneza,
um tempo em que sorridente
o amor aglutinava festas e jantares.
 
Amou-se um certo modo de despir-se,
de pentear-se.
Amou-se um sorriso e um certo modo de botar a mesa.
Amou-se um certo modo de amar.
 
No entanto, o amor bate em retirada com suas roupas amassadas, tropas de insultos
malas desesperadas, soluços embargados.
 
Faltou amor no amor?
Gastou-se o amor no amor?
Fartou-se o amor?
 
No quarto dos filhos
outra derrota à vista:
bonecos e brinquedos
pendem
numa colagem de afetos natimortos.
 
O amor ruiu e tem pressa de ir embora envergonhado.
 
Erguerá outra casa, o amor?
Escolherá objetos, morará na praia?
Viajará na neve e na neblina?
 
Tonto, perplexo, sem rumo
um corpo sai porta afora
com pedaços de passado na cabeça e um impreciso futuro.
No peito o coração pesa mais que uma mala de chumbo."

AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA (1992)  
Poesia reunida

Imagem: MB, Moita, 05.06.2024



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