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Diz o meu nome

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  Diz o meu nome pronuncia-o como se as sílabas te queimassem [os lábios sopra-o com a suavidade de uma confidência para que o escuro apeteça para que se desatem os teus cabelos para que aconteça Porque eu cresço para ti sou eu dentro de ti que bebe a última gota e te conduzo a um lugar sem tempo nem contorno Porque apenas para os teus olhos sou gesto e cor e dentro de ti me recolho ferido exausto dos combates em que a mim próprio me venci Porque a minha mão infatigável procura o interior e o avesso da aparência porque o tempo em que vivo morre de ser ontem e é urgente inventar outra maneira de navegar outro rumo outro pulsar para dar esperança aos portos que aguardam pensativos No húmido centro da noite diz o meu nome como se eu te fosse estranho como se fosse intruso para que eu mesmo me desconheça e me sobressalte quando suavemente pronunciares o meu nome Mia Couto , in  Raiz de Orvalho Imagem: MB, Moita, 12.06.2022

A viagem

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  A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o visitante sentou na areia da praia e disse: “Não há mais o que ver”, saiba que não era assim. O fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite, com o sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para repetir e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. José Saramago Imagem: MB, Lisboa, 18.06.2022 

Não me peçam razões

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Não me peçam razões, que não as tenho, Ou darei quantas queiram: bem sabemos Que razões são palavras, todas nascem Da mansa hipocrisia que aprendemos. Não me peçam razões por que se entenda A força de maré que me enche o peito, Este estar mal no mundo e nesta lei: Não fiz a lei e o mundo não aceito. Não me peçam razões, ou que as desculpe, Deste modo de amar e destruir: Quando a noite é de mais é que amanhece A cor de primavera que há-de vir. José Saramago , in  Os Poemas Possíveis Imagem: MB, Moita, 16.06.2022   

Respostas

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  " Tem paciência com tudo de não resolvido em teu coração e tenta amar as perguntas em ti como se fossem quartos trancados ou livros escritos em idioma estranho. Não pesquises em busca de respostas Que não te podem ser dadas Porque tu não as podes viver, E trata-se de viver tudo. Vive as grandes perguntas agora. Talvez num dia longínquo, Sem o perceberes, Te será dada a resposta" Rainier Maria Rilke Imagem: MB, Moita, 12.06.2022

As coisas mais simples

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  "Belo belo belo, Tenho tudo quanto quero. Tenho o fogo de constelações extintas há milênios. E o risco brevíssimo - que foi? passou - de tantas estrelas cadentes. A aurora apaga-se, E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora. O dia vem, e dia adentro Continuo a possuir o segredo grande da noite. Belo belo belo, Tenho tudo quanto quero. Não quero o êxtase e os tormentos. Não quero o que a terra só dá com trabalho. As dádivas dos anjos são inaproveitáveis: Os anjos não compreendem os homens. Não quero amar, Não quero ser amado. Não quero combater, Não quero ser soldado. Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples." Manuel Bandeira Imagem: MB, Moita, 12.06.2022

Angústia

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  Há dias de tanta angústia Que não sei do que ela é. Não sei se me sobra o sonho. Não sei se me falta a Fé. É uma angústia que nasce, Como de um solo, de mim, Que parece ser eu todo Com razão de ser assim. E esmaga-me toda a alma, Confunde todo o meu ser E tudo gira em meu torno Sem eu o compreender. Mágoa como um portão velho, Ferrugem da quinta em fim, É uma angústia que cai, Como num solo, por mim… Fernando Pessoa , 5-3-1931 Imagem: MB, Moita, 29-5-2022

Viver 🎼🎼🎼

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 🎼🎼🎼 Viver Mas era apenas isso, era isso, mais nada? Era só a batida numa porta fechada? E ninguém respondendo, nenhum gesto de abrir: era, sem fechadura, uma chave perdida? Isso, ou menos que isso uma noção de porta, o projecto de abri-la sem haver outro lado? O projecto de escuta à procura de som? O responder que oferta o dom de uma recusa? Como viver o mundo em termos de esperança? E que palavra é essa que a vida não alcança? Carlos Drummond de Andrade , in  As Impurezas do Branco Imagem: MB, Barreiro, 11-6-2022 (124) Gates of Assyria - 1 Hour of Ancient Ambient Music - YouTube