De que é feita a memória?

"- De que pensas tu que é feita a memória? - perguntou o meu pai,

(...)

- Não sei, papá - respondi (...) - Talvez seja feita de tudo o que já vi. - (...).

- Passa-se alguma coisa, pai? - perguntei.

- Não, é que ... Ti, sabes que tenho quase quarenta e um anos. E, mesmo assim, continuo a lembrar-me de todos os cheiros de Constantinopla como se ainda lá vivesse. 

(...)

- Como eu gostava dos molhos de açafrão e de Cravinho do Grande Bazar - disse, sonhador. E do cheiro do robe de lã do teu avô quando chovia, um odor bafiento e pesado. E do baclava das padarias. Tudo cheirava a mel, mesmo a luz que se refletia no Corno de Ouro. - Lambeu os lábios, brincalhão, e imitei-o. - Como achas que todas estas coisas ficam dentro de nós tantos anos?

- Talvez fiquem coladas a alguma coisa - sugeri.

(...)

- Talvez tenhas razão - disse, tomando-me as mãos e balançando-as no espaço que nos separava como a ponte de uma corda sobre a catarata de perto de Ponda, quando o vento a embalava. - Deus pôs-nos cola na alma, e o que fica preso nela é aquilo que sempre recordaremos."

Richard Zimmler, in Goa ou o Guardião da Aurora

Imagem: MB, Lisboa, 22.09.2018