Só mais um jogo

 Quem existe que possa dizer

“de nada me arrependo, tudo o que fiz
faria outra vez”,
quem não apanhe do chão
a cinza dos prazos vencidos,
e tente
soprar-lhe, entre os olhos,
um alarme
contemporâneo?
O tempo solidifica à
menor aragem, o passado está
selado
num arquivo que dispara
pontualmente a meio
da noite.
Este homem, por exemplo, que
joga às cartas no parque:
espuma da barba a escalar a cara,
memória de selvas, descampados,
a incerteza do nome.
O trunfo é paus
e pedras, um passo em falso
e uma árvore de fogo
fugaz.
Mas a rodada vai de feição
e sob a mesa há excursões
de cigarros, troços, uma nota de vez em quando,
este tactear no trilho das sombras,
um levantamento das terras e de
ossos.
Ele pergunta se já terá matado,
se alguma vez
terá matado
alguém,
e não se lembra, jura, já não sabe,
não devo ter sido eu, pensa, o trunfo é paus,
ou espadas, ou ia foi há muito tempo,
e vamos à desforra,
só mais um jogo, mais
uma vida.
Pedro Eiras, INFERNO, edição Assírio & Alvim

Imagem: MB, Gaio - Moita, 25.09.2020




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