As vozes que borbulham

 

O dia pede à madrugada

a tua mão em casamento

antes de te ver a espreguiçar

quando a luz da manhã

te acaricia a face

por entre as frestas da persiana.

Moves dedos que afastam vagarosamente o sono

e deixas bem longe o sonho,

fosse qual fosse.

As portas dos vizinhos abrem e fecham.

Aceitaste o pedido e sais como eles para o dia

que vorazmente suga veias e artérias,

para que se ganhe a vida

que vai sendo diariamente perdida.

Páras junto a uma montra que te espelha,

assaltando a tua dormência

e travando um percurso que até aí não despertava

a consciência para fora do mais fácil.

Nada ameaça um coração empedernido

nem um cérebro emparedado,

embora seja cruel amar de modo indefinido

e reflectir sobre tudo aquilo que tem recuado.

Não dês, por favor, salto ágil

para a linha electrificada de metro ou comboio.

Resiste ao abandono de provares o esmagamento

por autocarro ou outro veículo pesado.

Aceitaste o pedido de casar com a vida

até que a vida te separe

por si mesma.

Mexe-te guerrilheira,

enxota as lágrimas

pingadas dos que só querem desabafar

e não ousam o contra-ataque.

Sopra para as paredes da cidade.

Assusta a gente lesmática

que se admira com o teu gesto,

desconhecendo o registo de épocas paleozóicas,

em que uniões faziam força.

Revolução agora é não ir sempre comer

ao mesmo lado.

Revolução é deitar-se dez minutos mais tarde.

Para ti, não, para mim, não!

Aguarda e substituirei cansaços.

Os murmúrios serão vozes que borbulham.

Os nossos nomes

ficarão esculpidos

nas portas de cada vizinho.

Um a um saberão que não tem de ser assim.

Atrás do absurdo igual

uiva a fidelidade ao irrepetível humano,

o exemplo converge para as praças

e apela a um tumulto de palavras

livres e claras.

São meras palavras…

Pois são.

Mas quebram a angústia mastigada em cacos,

pondo novamente no céu

a esperança que já não era esperada.

Supino Latino

Imagem: MB, Rosário, 16.01.2023