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Como uma nuvem

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  Devia morrer-se de outra maneira. Transformarmo-nos em fumo, por exemplo. Ou em nuvens. Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão de convite para o ritual do Grande Desfazer: “Fulano de tal comunica a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje às 9 horas. Traje de passeio”. E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos escuros, olhos de lua de cerimónia, viríamos todos assistir a despedida. Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio. “Adeus! Adeus!” E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento, numa lassidão de arrancar raízes… (primeiro, os olhos… em seguida, os lábios… depois os cabelos… ) a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se em fumo… tão leve… tão subtil… tão pólen… como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono ainda tocada por um vento de lábios azuis… José Gomes Ferreira , in 'Poesia II' Imagem: MB, Moita, 25.10.2024