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Batem à porta

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  Muitas vezes te esperei, perdi a conta, longas manhãs te esperei tremendo no patamar dos olhos. Que me importa que  batam à porta, façam chegar jornais, ou cartas, de amizade um pouco — tanto pó sobre os móveis tua ausência. Se não és tu, que me pode importar? Alguém bate, insiste através da madeira, que me importa que batam à porta, a solidão é uma espinha insidiosamente alojada na garganta. Um pássaro morto no jardim com neve. Nada me importa; mas tu enfim me importas. Importa, por exemplo, no sedoso cabelo poisar estes lábios aflitos. Por exemplo: destruir o silêncio. Abrir certas eclusas, chover em certos campos. Importa saber da importância que há na simplicidade final do amor. Comunicar esse amor. Fertilizá-lo. «Que me importa que batam à porta...» Sair de trás da própria porta, buscar no amor a reconciliação com o mundo. Longas manhãs te esperei, perdi a conta. Ainda bem que esperei longas manhãs e lhes perdi a conta, pois é como se no dia em que eu abrir a porta do teu amor t

Os sapatos do meu pai

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  Em algum instante de sua vida, você precisa tirar os sapatos de seu pai. E colocá-lo a dormir. Você mudará a sua perspectiva de filho e será um pouco pai de seu pai. Há uma humildade que atinge os pensamentos no ato de se agachar, desamarrar os sapatos e encontrar uma fresta no calcanhar para tirá-los. Preste atenção: aqueles minutos são eternos, seguem uma duração emocional incomparável. Lembrará de quantas vezes ele lhe fez isso, sem que você pudesse antever o esforço de convencer alguém cansado a lhe desfazer de suas roupas. Aquele marmanjo torna-se uma criança, como você já foi: briga, não quer, reclama, esperneia, diz que consegue sozinho. Não dará ouvidos às lamúrias. Seguirá com o protocolo do sono até acomodar o seu gigante debaixo das cobertas. Eu botei meu pai em seu berço uma noite de minha consciência, quando ele estava exausto de dirigir por cinco horas. Eu já lhe vi dormindo alisando a sua testa suada e seus cabelos engomados. Murmurei algumas palavras cantadas. Brinque

Começa a ser dia

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  Começa a ir ser dia, O céu negro começa, Numa menor negrura Da  sua noite escura, A Ter uma cor fria Onde a negrura cessa. Um negro azul- c inzento Emerge vagamente De onde o oriente dorme Seu tardo sono informe, E há um frio sem vento Que se ouve e mal se sente. Mas eu, o mal-dormido, Não sinto noite ou frio, Nem sinto vir o dia Da solidão vazia. Só sinto o indefinido Do coração vazio. Em vão o dia chega Quem não dorme, a quem Não tem que ter razão Dentro do coração, Que quando vive nega E quando ama não tem. Em vão, em vão, e o céu Azula-se de verde Acinzentadamente. Que é isto que a minha alma sente? Nem isto, não, nem eu, Na noite que se perde. Fernando Pessoa , in   Cancioneiro Imagem: MB, Gaio-Moita, 07.11.2022

Povoamento

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  No teu amor por mim há uma rua que começa Nem árvores nem casas existiam antes que tu tivesses palavras e toda eu fosse um coração para elas Invento-te e o céu azula-se sobre esta triste condição de ter de receber dos choupos onde cantam os impossíveis pássaros a nova primavera tocam sinos e levantam voo todos os cuidados Ó meu amor nem minha mãe tinha assim um regaço como este dia tem E eu chego e sento-me ao lado da primavera Ruy Belo ,  Povoamento,  in  Aquele grande rio Eufrates,  Edições Assírio & Alvim Imagem: MB, Moita, 11.11.2022 

Porta

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  A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade. E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil. E os meios perfis não coincidiam. Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos. Era dividida em metades diferentes uma da outra. Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. Nenhuma das duas era totalmente bela. E carecia optar. Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia. Carlos Drummond de Andrade Imagem: MB, Rosário, 11.11.2022

Simbiose

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  "(...) E os corpos enrolados ficam mais enrolados ainda e a carne penetra na carne. (...)" Carlos Drummond de Andrade ,  Casamento do Céu e do Inferno,  in  Vai, Carlos!,  Edição Tinta da China, 2022   Imagem: MB, Lisboa, julho 2022

A dois

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  Pensar a dois, como se fazer o pensamento fosse como fazer amor. Roberto Juarroz , in Poesia Vertical, edição Sr. Teste Imagem: MB, Moita, 13.11.2022