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Um outro poema de amor

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  No fundo, as relações entre mim e ti cabem na palma da mão: onde o teu corpo se esconde e de onde, quando sopro por entre os dedos, foge como fumo um pequeno pássaro ou um simples segredo que guardávamos para a noite Nuno Júdice , in   O movimento do mundo   Imagem: MB, Moita, 04.10.2020

Sulcos

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  De que lado viste chegar o Outono? Por que janela o deixaste entrar? És tu quem canta em surdina, ou a luz espessa das suas folhas? Em que rio te despes para sonhar? É comigo que voltas a ter quinze anos e corres contra o vento até te perderes na curva da estrada? A quem dás a mão e confias um segredo? Diz-me, diz-me, para que possa habitar um a um os meus dias. . Eugénio de Andrade , Os Sulcos da Sede Imagem: MB, Moita, 25.09.2020

Só mais um jogo

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  Quem existe que possa dizer “de nada me arrependo, tudo o que fiz faria outra vez”, quem não apanhe do chão a cinza dos prazos vencidos, e tente soprar-lhe, entre os olhos, um alarme contemporâneo? O tempo solidifica à menor aragem, o passado está selado num arquivo que dispara pontualmente a meio da noite. Este homem, por exemplo, que joga às cartas no parque: espuma da barba a escalar a cara, memória de selvas, descampados, a incerteza do nome. O trunfo é paus e pedras, um passo em falso e uma árvore de fogo fugaz. Mas a rodada vai de feição e sob a mesa há excursões de cigarros, troços, uma nota de vez em quando, este tactear no trilho das sombras, um levantamento das terras e de ossos. Ele pergunta se já terá matado, se alguma vez terá matado alguém, e não se lembra, jura, já não sabe, não devo ter sido eu, pensa, o trunfo é paus, ou espadas, ou ia foi há muito tempo, e vamos à desforra, só mais um jogo, mais uma vida. Pedro Eiras , INFERNO , edição Assírio & Alvim Imagem: MB

Dispersão

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  "Quem como eu em silêncio tece Bailados, jardins e harmonias? Quem como eu se perde e se dispersa Nas coisas e nos dias? Sophia de Mello Breyner Andersen Foto: MB, Praia do Ribeiro do Cavalo, Sesimbra, 10.06.2015

Equinócio

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  O amor tem uma música que nasce das catorze linhas que se encontram entre os dedos que escrevem o soneto e os lábios que o lêem. Toco esta música quando desenho o teu rosto, e começo a seguir a linha que se solta dos teus lábios para ver se chego ao horizonte do teu corpo, onde o verso dobra o círculo de um horizonte imprevisível. E dás-me o outro lado da vida, para que eu descubra o continente em que o sol nunca se põe, as ilhas quentes de um calor de pássaros, e o rumor incessante da maré a que a tua voz roubou a espuma de um murmúrio. Nuno Júdice , Os dias do Amor Imagem: MB, Moita, 21-7-2020

Cada dia...

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  "(...) levantamo-nos todas as manhãs para um novo dia, para um novo mundo, que tem de ser criado do princípio. Cada dia é um improviso brilhante com orquestra completa - a luz sobre o mar, a folhagem, as lanças dos ciprestes, a espuma prateada das oliveiras..." Lawrence Durrel , in  As Ilhas Gregas Imagens: MB, agosto 2015, Santorini, Grécia  

A chave das coisas

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  O que significa o rio, a pedra, os lábios da terra que murmuram, de manhã, o acordar da respiração? O que significa a medida das margens, a cor que desaparece das folhas no lodo de um charco? O dourado dos ramos na estação seca, as gotas de água na ponta dos cabelos, os muros de hera? A linha envolve os objectos com a nitidez abstracta dos dedos; traça o sentido que a memória não guardou; e um fio de versos e verbos canta, no fundo do pátio, no coro de arbustos que o vento confunde com crianças. A chave das coisas está no equívoco da idade, na sombria abóbada dos meses, no rosto cego das nuvens. Nuno Júdice, Meditação sobre Ruínas Imagem: MB, Guia, agosto 2020