Quem existe que possa dizer “de nada me arrependo, tudo o que fiz faria outra vez”, quem não apanhe do chão a cinza dos prazos vencidos, e tente soprar-lhe, entre os olhos, um alarme contemporâneo? O tempo solidifica à menor aragem, o passado está selado num arquivo que dispara pontualmente a meio da noite. Este homem, por exemplo, que joga às cartas no parque: espuma da barba a escalar a cara, memória de selvas, descampados, a incerteza do nome. O trunfo é paus e pedras, um passo em falso e uma árvore de fogo fugaz. Mas a rodada vai de feição e sob a mesa há excursões de cigarros, troços, uma nota de vez em quando, este tactear no trilho das sombras, um levantamento das terras e de ossos. Ele pergunta se já terá matado, se alguma vez terá matado alguém, e não se lembra, jura, já não sabe, não devo ter sido eu, pensa, o trunfo é paus, ou espadas, ou ia foi há muito tempo, e vamos à desforra, só mais um jogo, mais uma vida. Pedro Eiras , INFERNO , edição Assírio & Alvim Imagem: MB